terça-feira, 31 de março de 2009

É que eu esqueço tudo II

Faz mais de um ano que estive no Barbalho e conheci João. Deve ter crescido. Deve estar alguns centímetros mais alto e já deve estar lendo sem soletrar.
Iza me entrega a lista do supermercado para eu corrigir.
Leio e decifro. Batata está certinho. Tem palavras que fazem mais sentido. Para ela ainda é difícil entender o "agá", o "rê" no meio das letras, o "chhhh do ch" e tantos outros que não pareçam com batata, casa, gato, panela. Sílabas assim fazem sentido para ela. Eu corrijo as palavras sem perguntar o que significam porque sei mais ou menos o que está faltando na dispensa. Não, Mila... era cenoura e não cebola. Ela senta do meu lado e reescrevemos a lista.
Mila, sabe o que é?
O que Iza?
Eu com um problema sério de "falta de esquecimento". Eu esqueço tudo. É falta de vitamina, é? Deve ser. Eu vou marcar um médico.
Mas esquece tudo o que Izinha?
Tudo ... não sei mais escrever nada...
Iza estava na quarta série quando fui morar com meus avós. Mal sabia escrever o nome e tinha aulas de inglês. Eu e minha decidimos que ensinaríamos o mistério das palavras para Iza. Minha morreu e Iza sente falta da companhia diária dela. Meu avô também. Meu avô faz o mercado com a lista de Iza, que eu corrijo. Antes era com a lista de minha avó. Já tentei convence-lo que deixasse eu fazer o mercado... mas ele não abre mão. As vezes o faço companhia mas normalmente quando isso acontece o prejuízo é grande. Nós dois ficamos tentando adivinhar o que Dudu gosta... e o carrinho sai duas vezes mais cheio de coisas que nem ele nem eu podemos comer.
Iza fica parada na cabeceira da mesa. Sei que está sofrendo. Voltou para alfabetização. Eu quero ser professora do colégio que ela estuda. E quero ser professora no Barbalho também. Assim que me formar eu vou ser professora, também.
Iza come bem. Não é falta de vitamina. Tem anemia falciforme, mas toma todos os remédios e os médicos dizem que está bem. Só precisa emagrecer.
Pergunto se ela tem feito os deveres de casa. Ela começa outro assunto. Pergunto se ela tem feito os deveres de casa... Ela me olha um pouco envergonhada. Iza não é preguiçosa. Ela mantém em ordem uma casa enorme. Ela faz sopa, ela conversa, ela ouve rádio, ela é animada. Ela enche um pouco aquela casa enorme que sente falta de sua dona. Ela preenche um pouco o coração de meu avô que sente falta de uma companhia. Minha avó dizia que Iza era uma benção. Minha avó as vezes dizia que ia morrer e eu não acreditava. Eu acredito que Iza é uma benção. Mesmo quando ela faz algumas trapalhadas.
Penso no que poderia dizer para Iza...
Iza... tem livros de receita aqui em casa?
Ela balança a cabeça afirmativamente.
Olha só... eu vou comprar gingobiloba. Lembra que minha tomava gingobiloba para esses problemas de memória?
Pois bem... eu compro a gingobiloba e em troca você faz umas receitas novas para mim. Sem carne. Muita batata, cenoura, chuchu, verduras, alface. Mas além disso... quero que você copie as melhores receitas para mim, certo? Vou comprar um caderninho e você olha no livro, copia e a gente vai tirando suas dúvidas. Topa?
Ela me olha desconfiada.
Oh Mila... você não gosta da minha comida não é?
Oxe Iza! Gosto sim! Gosto tanto que quero que você escreva as receitas para mim!
Ela ri, acho que entende e complementa:
Mas e a "falta de esquecimento.... será que essa gingobiloba cura mesmo?

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