sexta-feira, 17 de abril de 2009

A sala é grande e aberta. Chão de madeira. Poderia, perfeitamente, ser um tablado para seus rodopios. Era muito pouco utilizada. Lembro de minha avó deitada no sofá amarelo próximo a janela de persianas brancas uma semana antes de morrer. Queria aprender a dançar, queria aprender a pintar, queria aprender eternamente. Fazia tanta coisa de retalho. A maior e única herança que quis de fato receber foi uma blusa toda colorida, toda de fuxico, que ela colocou um laço azul bem forte para ajustar. Cada fuxico daquele, o que guarda? O que ela pensou ao passar cada linha? As pessoas morrem e a gente inventa tanta coisa... talvez para se sentir mais vivo, não sei... talvez por amor. Deitada, não lembro onde estavam as mãos, suponho que repousando sob os fartos seios, travesseiro de neto, eu brincava, ou sobre a face evitando que a luz incomodasse seus olhos que era irremediavelmente azuis. Lembro quando ganhou um imenso bouquet de rosas e a fotografei nesse mesmo sofá. No dia achei que nenhuma foto tinha ficado boa... Hoje admiro o retrato. Ela não precisa virar um mistério para mim. Amava minha avó. Primeiro como uma criança ama uma mãe. Depois como um aprendiz ama uma professora. Você sempre escolhe o caminho mais difícil, filha. Eu ria e tentava entender. Ela era católica. Mas era mesmo muito próxima da natureza. O perdão, oferecer a outra face... aprendi com ela. A imagem que as filhas tem de minha avó parece tão frágil, tão submissa... não é a imagem que eu tenho dela. Morreu de repente. Eu admito que não achava que ela morreria tão cedo. Leucemia. Auto-imune. Talvez minhas tias e minha mãe tenham razão sobre a dor de minha . Guardar tanto... o sangue confunde. Tinha paz nesse sangue branco? Me contou uma vez que caiu no meio da rua. Eu nunca acreditava e me zangava quando ela dizia que ia morrer. O olho roxo. Aquela imagem última dela. Como soa infantil. A minha avó morreu feia, ferida. Isso me incomodou profundamente. A morte deixou de ser romântica. Deixou de ser a morte sutil, jovem, quase encorajadora.

Mas continuou sendo parte da vida.

Queria terminar o livro e deitei no sofá amarelo. O céu está cinza, o dia abafado. Vai chover. Faltam trinta páginas. Porque o autor guardou o melhor para o final? A vida me viveu. Odeio esse discurso. As vezes o cometo. Aprendi com minha mãe. Ela aprendeu com minha avó? A vida das resignações. Dos sacrifícios. Da mansidão.

Durmo profundamente no sofá. Estou dormindo mais do que o normal. Estou triste mas não tanto quanto minha na semana anterior a sua morte. Eu não vou morrer semana que vem e não tenho medo de morrer. Nem medo de não viver. Nem de envelhecer. Tenho medo, só e temporariamente, de ficar de cabeça para baixo. Minha mãe levanta a pele do rosto. Deve ter uns 35 anos. Se olha frente ao espelho e anseia pela juventude. Tem tanta juventude. Quase não tem rugas aos 46. Não é mais como aquela armação de óculos, como aquele vestido preto das velhas de Portocamba ... mas ficou míope.

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