terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Carta

Querida,

As cerejas aqui estão doces. Estou saindo muito para passear. A vida na vila continua como você a conheceu, aquela calmaria... de manhã cedo é ainda escuro, depois vem aquela névoa que embranquece todo o horizonte e esconde o topo da montanha, bem na frente da janela da sala de jantar. Aquela onde eu escondia os chocolates e jogávamos brisca a noite.
E a noite só vem bem tarde, continua, quase quando já temos sono, bem na hora de tomar uma sopa, jogar baralho e deitar para dormir. Nos domingos tem a missa, o padre ainda coloca todas as crianças no altar para distrai-las, a missa continua breve, a igreja de pedra fria. No final levo umas flores para sua . Sinto saudades da rede na varanda, do calor e das conversas, do mais aqui me basta. Devo admitir que preparar-me para uma vida assim não estava nos meus planos, mas como você bem sabe sou homem de coragem e tudo que quero é organizar as coisas muito bem antes de ir e aqui me parece um bom lugar para amenizar despedidas.
Semana passada, porém, aconteceu algo que me deixou meio perplexo. E te conto por que sei que você é a única que entenderia. Chegou um forasteiro, seguindo o caminho de Santiago de Compostela . Eu estava no cruzeiro, era de tardezinha e eu tinha ido de bicicleta, tentando passar o tempo. Até ri lembrando que quando vínhamos passear, quando você era bem pequena, ficava imaginando encontrar um urso filhotinho para levar para casa... e eu sempre te pegava no colo, te punha de cabeça para baixo e falava que era mais fácil achar um javali! Você saia correndo, rindo... mas ficava sempre perto dos nossos olhos com medo do javali aparecer! Funcionou por algum tempo, lembra?! Até você decidir que medo não existia. Já tem tantos anos isso! Uns 15? 16? Mas voltando ao assunto, para não me alongar muito nessa carta. Apareceu um forasteiro na vila e o encontrei lá no cruzeiro. Ele tinha uma aparência suja, embora de olhar muito carinhoso. Já estava perto de anoitecer e me perguntou se havia algum lugar onde podia se hospedar antes da noite cair. Eu não ri, porque não riu para estranhos, mas disse que podia dormir no palheiro, que era o lugar mais confortável que encontraria naquelas redondezas. Ele não entendeu que estava brincando e aceitou minha sugestão. Descemos juntos a rua de pedra, ele voltando o caminho que tinha avançado e eu empurrando a bicicleta. Não trocamos uma só palavra, mas ele ganhou minha simpatia. Já não sabia mais para onde leva-lo, já não existem palheiros aqui como antigamente. Então o trouxe para casa. E é isso, querida, que preciso contar-te, o forasteiro ficou. Já tem dois dias que vem dormir. Passa a tarde inteira no rio gelado e volta quando escurece trazendo as garrafas cheias de agua da fonte, cerejas, que como disse, estão muito doces e sempre uma nova história. Me perguntou se podia ficar uns dias, que estava cansado, que me pagava bem... e eu não pude negar... aceitei.... não sei, mas acho que por detrás daquela barba suja... é seu tio.
Não conte para os outros... as vezes o coração quer acreditar. Sei que não passo perigo, então fique tranquila e mande beijos para os seus e para os meus também.

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